Minha mãe gritou do quarto: “Desvira esse sapato!
Você não sabe que dá azar deixar sapatos virados?”
De uma forma mecânica, sem outro estímulo senão o
medo de ser fisicamente repreendido, caminhei até os dois sapatos marrons e
desvirei um, depois o outro. Fiquei uns bons-segundos resolvendo se alinhava os
sapatos ou não... minha mãe, ávida por organização e arrumação resolveu por
mim, e lá veio mais uma ordem: “Coloca esses sapatos na sapateira do quarto,
menino preguiçoso!”
Dando margem à outra habilidade de minha mãe, a
adivinhação (a primeira era arrumar e organizar!), eu me abaixei vagaroso como
um guindaste gigante em filmes sobre a União Soviética nos tempos da
Guerra Fria (onde tudo era gigantesco, descomunal) e peguei os dois pesos-castigos
da minha existência naquele momento: aquele par de sapatos marrons!
Com os meus atuais (e momentâneos) castigos na mão
esquerda, caminhei a passo-médio até o quarto, abri o pequeno armário de
sapatos e coloquei os dois alinhados, lado a lado, próximos aos tênis, embaixo
da prateleira de chinelos; fechei a porta do armário e fui até a janela. Nesse momento
minha mãe, com a sua terceira habilidade – repetir ordens em forma de perguntas
– retomou o monólogo que nos unia: “José, já fez o que eu te “pedi” ?”;
respondi: “Sim!”, com a habitual sem-vontade.
Da janela avistei a rua, os meus colegas brincando,
o sol forte, a bola que rolava para lá e para cá, entre os pés descalços e os
gritos de “Passa! Passa! Vai...!”, mas eu tinha mais uma tarefa: arrumar as
compras no armário da cozinha, obviamente sob as orientações diretas de minha mãe.
Senti um desejo enorme de pular a janela e correr
atrás da bola e também gritar:”Vai! Vai!...”, mas como dizia meu pai: "Vontade dá e passa!", por isso, antes eu teria que ajudar em
casa.
Não poder ir para a rua naquele momento, e ter que
arrumar compras no armário me fez sentir uma raiva enorme... ouvi minha mãe
vindo pelo corredor e, logo, sua voz encheu o quarto: “Já guardou, né? Vem me
ajudar a guardar as compras, vem...!”; respondi o que podia: “Já vou!” e já
estava saindo do quarto, aborrecido, querendo me vingar das tarefas e ir para o
jogo de bola... de repente olhei para a sapateira; sorri!; antes de deixar o
quarto, fui até o pequeno armário, abri a porta, peguei os dois sapatos marrons
e os joguei embaixo da cama (virados e revirados) e disse para eles e para mim: “Depois eu coloco vocês no lugar certo! Agora
vocês é que serão castigados!”; então saí mais satisfeito.
“Mãe, o que guardo primeiro?” – na cozinha eu era só animação.
Olá, meu caro! Como é bom deliciar-me com seus textos! Já tentei algumas vezes deixar alguma mensagem aqui, mas a minha pouca intimidade com essas comunicações on-line sempre me limitam...
ResponderExcluirAvec tendresse
Arlene
Oi Plinio! Fiquei fascinada nesse texto! Viajei na minha infância... Quem dera eu tivesse tido essa ideia, certamente eu seria hoje outra pessoa, rsrsrssss... Virei sua fã! Vou ler os demais, aproveitando a viagem. Beijo Adriana Tomasio
ResponderExcluir