Quase todos os dias, por volta das oito da noite, Gilmar podia ser visto
sentado junto aos “Arcos”, vestido com a mesma camisa de botão, calça de tecido
escuro e sapatos de bico-fino, como se estivesse voltando de “mais um dia de
trabalho”. Na mão esquerda apresentava dois anéis no (dedo) anelar: um de prata
e uma aliança de ouro.
Todos os dias Nilce passa sob os Arcos da Lapa e via Gilmar sentado e
bebendo,algumas vezes conversando.
No início Nilce tinha receio daquele homem, negro, quase sempre bêbado e
com as mesmas roupas, sentado (invariavelmente) no mesmo local, “ao pé” de uma
das colunas dos Arcos da Lapa. Porém, com o tempo, e os insistentes
cumprimentos de Gilmar com os passantes (Boa noite! Como vai o senhor? Como vai
a senhora?), Nilce acabou cedendo e, com a voz baixa, respondia: “Boa noite!”,
e acelerava (um pouco) o passo.
Depois de alguns meses, Nilce perdeu o receio e já cumprimentava aquele
homem, mesmo quando ele estava “ocupado” com outra conversa ou distraído
“tomando umas e outras”.
Ao passar pelos Arcos Nilce dizia: “Boa noite!”
E ele respondia: “Boa noite!”
Ela tinha notado a aliança e se corroia de curiosidade – queria, na
verdade “queria” era pouco... precisava muito, ardentemente, saber a história
daquele “anel de compromisso”.
A cada dia, Nice, curiosa, buscava esticar a conversa: “Como o senhor
está?”
E a resposta era sempre a mesma: “Bem, esperando a hora de ir embora...”
Dia após dia Nilce seguia o caminho e pensava como conseguiria
direcionar a conversa para o seu (secreto) objetivo: saber a história daquela
aliança na mão esquerda do Gilmar.
Numa quinta-feira, ao se aproximar do homem, que estava sorrindo e
falante – sinal de que já tinha bebido um pouco mais “da conta” -, Nilce
resolveu tentar o plano mais absurdo (“inimaginável!”, como ela mesma
classificou a ideia) e sentou na calçada, ao lado de seu Gilmar.
Primeiro sentiu o sangue esquentar o rosto (tinha certeza de que estava
vermelha como um pimentão), envergonhada, temerosa de ser vista e mal compreendida
naquela situação - a amizade, quase íntima, com Gilmar.
Respirou fundo e sacou, do seu “baú de caras e bocas”, um sorriso
amistoso e começou uma conversa aparentemente sem pretensões”: “Que noite
agradável, não é seu Gilmar? Uma lua linda; um vento bom... é o outono, a
estação boa para se viver! E olha que muita gente não dá valor a isso!”
Gilmar olhou para dona Nilce com curiosidade e enquanto respondia de
forma mecânica às perguntas, pensava qual o motivo daquela mulher; por que ela
tinha sentado e estava com aquele papo de “cerca Lourenço”... Gilmar pensava: “Será
que dona Nilce quer só amizade? Namoro? Sexo sem compromisso? O quê... o quê
ela quer?”
Dona Nilce, sem perceber os (secretos) questionamentos de Gilmar,
continuava dando andamento ao seu plano (igualmente secreto): “O senhor mora
onde? É casado? Tem filhos? Qual o nome de sua esposa?...”
Gilmar estava confuso com a atitude daquela mulher; num certo momento
nem conseguia mais entender as perguntas e sequer organizar as respostas que deveria
dar.
Nilce falando e Gilmar tonto.
De repente ele estende a mão esquerda e coloca no joelho da mulher,
respira fundo e começa a explicar o fato mais importante da sua vida, esperando
um pouco de silêncio.
“Dona Nilce, eu não sou bom com as palavras, mas o que realmente importa
é que eu minto para todo mundo há muito tempo. Eu não tenho mais trabalho, mulher
e nem casa! Mais ou menos há três anos, quando eu estava chegando do trabalho, minha
senhora estava me esperando arrumada. Entrei e ela nem esperou eu falar e
começou a dizer: ‘Gilmar eu me apaixonei por outro homem e vou embora com ele!’
Pegou uma bolsa de viagem, que já estava pronta, beijou meu rosto, apertou a
minha mão e saiu pela porta. Eu fiquei tonto e a raiva me cegou. Corri até o
quintal, peguei ela pelos cabelos, arrastei para dentro de casa e só parei
quando ouvi os gritos dela: ‘Larga, você está me machucando!’ Eu estava com
raiva, com medo e assustado; não queria que ela fosse embora da minha vida, da
nossa casa, por isso puxei ela daquele jeito. Ela chorava; sem soltar a bolsa e
com os olhos fixos em mim, disse em voz baixa e firme: ‘Nem você, nem Deus vai
impedir que eu vá embora. Ouviu? Ninguém, Gilmar!’ Senti que não adiantaria
discutir naquela hora e fiquei olhando para o chão, ouvindo ela sair e a porta
bater.”
Gilmar se calou para respirar; Nilce estava tomada pela história; sentia
pena daquele homem.
Ele continuou: “Andei pela casa até de manhã. Fui até o comércio e
comprei três calças e quatro camisas iguais a que estava usando – resolvi que sempre
usaria a mesma roupa daquela noite, por isso sempre uso esta blusa, a calça e
os sapatos! Larguei o emprego e perdi a casa. Todos os dias, na mesma hora que
ela foi embora, eu passo na porta da nossa casa, para saber se ela voltou. Mas
até hoje, dona Nilce, ela não voltou.”
Nilce não aguentou aquilo tudo e abraçou Gilmar e só conseguiu dizer: “Um
dia ela volta. Um dia ela volta, seu Gilmar.”, levantou e foi embora.
No dia seguinte Nilce não
viu seu Gilmar, nem nos outros dias... ele nunca mais foi visto nos Arcos da
Lapa.
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