terça-feira, 3 de março de 2015

MURO.

Leila cantou com força e decisão; nunca tinha sentido vontade igual - cantou sozinha, alto, entonação competente... e ria de tempos em tempos, como se gostasse da audição, que apresentava para si mesma.

A casa vazia, no início da noite, denunciava uma ponta de solidão, mas Leila cantou, floreou e, num dado momento, inventou frases e sentimentos, recriando a letra... dando mais intimidade entre os seus sentimentos e as intenções do autor.

As casas próximas, com poucas luzes acesas - a maioria nas cozinhas -, mantinham-se em silêncio, quase um ato de cumplicidade com a vizinha e seus sentimentos.

Após cantar algumas vezes, florear, rir e retomar a canção, Leila chorou. Com decisão ímpar, continuou a cantar, sem tanta força ou beleza, mas embalada pelas lágrimas e a respiração ofegante, pouca e insistente.

Dona Dora chegou-se ao muro, próximo da porta da cozinha da amiga, mas velou, em silêncio, o canto doído e insistente... dona Dora chegou a limpar algumas lágrimas; Leila ainda insistia no canto, no lamento, no riso dolorido das lembranças.

A um dado momento, não suportando tamanha tristeza, e com coragem, dona Dora chamou: "Leila! Leila!"; o canto diminuiu... era quase uma oração; dona Dora insistiu: "Leila, minha amiga, responda!" 

A porta da cozinha da casa de Leila se fechou; nenhuma palavra foi dita; nenhuma resposta foi dada.
E de dentro da casa, fechada, mais escura e triste, todos puderam ouvir Leila continuar o choro, agora sem canções, sem floreios... só a tristeza.

Dona Dora, sem sair do lugar, encostou a mão esquerda no muro - a única fronteira entre ela e a amiga de tantos anos - e lamentou: "Meu Deus, quanta dor!"

Um comentário:

  1. Fiquei imaginando a dor de Leila. O que teria feito Leila chorar dor tão dolorida. Quais seriam suas perdas? Fiquei imaginando que Leila chora a dor que dilacera a alma e a lembrança que conforta. Chorei a dor indizível de Leila.

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