Mercia tinha muitos sonhos, mas todos escondidos, pois acreditava que se pensasse 'mais alto' poderia ser ouvida e, sendo ouvida, poderia inviabilizar os seus desejos - ela sempre acreditou que falar sobre sonhos e planos trazia má sorte.
Seu marido e os três filhos tinham rotinas muito comuns - acordavam, escola-trabalho, casa, jantar, televisão e dormir.
E enquanto todos viviam suas rotinas sem muitas modificações, Mércia sonhava todos os dias com uma vida nova, com novos amigos e lugares diferentes; sonhava em viajar, em ver o pôr-do-sol cada dia em uma paisagem diferente - praias, montanhas, vales, estradas... Tinha dias que ela sonhava em ser caminhoneira, pois assim viajaria e trabalharia ao mesmo tempo.
Mércia não aguentava aquela vida de rotinas e, muito menos, de 'rotinas que envolviam copos, pratos, talheres e fogão'.
Uma tarde dessas o marido ficou olhando para Mércia. Depois de algum tempo perguntou: "Você está bem?"
Mércia, sem vontade de muitas conversas, respondeu: "Se estar bem é estar aqui, junto da minha família e fazendo as coisas que faço todos os dias... eu estou bem!"
O marido achou aquelas frases muito mau-humoradas e resolveu 'investigar' um pouco mais. Depois de dois ou três minutos, voltou às perguntas: "Você está feliz?"
"Não e sim!" foi a resposta. O marido, meio desconsertado, pois não esperava um 'não', tomou coragem e voltou a perguntar: "Mas, por que 'não'? Você tem sua casa, sua família..."
Mércia achou que aquela conversa não prestaria muito, mas queria responder - era a primeira chance de 'conversar mesmo' em anos - e foi logo sendo sincera: "Minha casa, minha família, as roupas pra lavar de toda a família, a casa pra limpar, comida pra fazer... e, por incrível que pareça, muitos sonhos-não-realizados-e-escondidos-na-minha-alma!"
O marido estava sentindo muitas coisas - assustado e excitado - perguntou: "Feliz... você é feliz?"
Mércia sabia que a conversa iria chegar até aquela pergunta, mas não deseja responder, simplesmente porque não sabia a resposta - tinha dias em que se sentia feliz, em paz; mas tinha dias em que as estradas-e-o-pôr-do-sol chamavam por ela e, nesses dias, ela não era feliz -; para não responder, Mércia abaixou a cabeça, andou na direção da cozinha e depois de um ou dois minutos trouxe um copo de água, entregou ao marido, acaricou a cabeça dele e saiu para o quintal.
A conversa, naquele momento, tinha acabado.
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